Global Analysis

A crise brasileira

6 lições de como cristãos podem evitar a polarização entre si em meio a um contexto político dividido.

Paul Freston & Raphael Freston nov 2016

O Brasil bateu um recorde um pouco depois do encerramento dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, ganhando uma nova medalha de ouro: o único país a ter dois impeachments presidenciais em 24 anos.

Em contraste com o espírito olímpico visto na cerimônia de encerramento dos jogos, na qual competidores colocavam as diferenças de lado para celebrar a unidade numa grande festa, alguns cristãos brasileiros têm adotado uma postura polarizada e divisiva durante a crise atual no país. Ideologias de esquerda e de direita crescem em meio a contendas entre cristãos, causando divisões até mesmo em famílias, sem mencionar nas mesmas igrejas ou denominações.  Nosso chamado como cristãos para a unidade na diversidade parece afundar em meio aos argumentos.

Segundo os indicadores, a crise política brasileira está longe do fim. Além disso, tal polarização cristã não é exclusiva ao Brasil. Basta olhar para as eleições presidenciais dos EUA, por exemplo.

Portanto, é importante continuar a articular princípios sobre como agir neste contexto tão difícil. Apresentamos abaixo 6 princípios de conduta para líderes cristãos e aqueles por quem eles são responsáveis, não somente no contexto brasileiro, mas para todos ao redor do mundo que se deparam como situações igualmente desconcertantes.

Primeiro Princípio: Mais importante do que saber que posição adotar, é saber como se comportar.

Neste momento em que a política ameaça dilacerar o mundo cristão (talvez mais do que a sociedade como um todo), queremos sugerir alguns princípios para o debate político. Princípios que levam em conta que este momento passará e que dentro de alguns anos os cristãos não terão mais que se posicionar sobre Dilma, Lula, Cunha, Aécio e Sérgio Moro, mas ainda terão que conviver entre si como irmãos na fé e dar um exemplo de seriedade e sabedoria para a sociedade. Daí a importância de cultivar o pluralismo político natural da comunidade cristã, de saber debater e discordar sem se excomungar mutuamente ou distorcer as motivações alheias, lembrando que a política, embora muito séria, pertence ao reino do relativo e não do absoluto, à esfera das convicções, mas não (com raras exceções) à esfera das doutrinas básicas da fé.

Segundo Princípio: Cultivar o recato político cristão

Em matéria de política, o cristianismo se caracteriza por um certo recato, uma certa hesitação, um não-dogmatismo, um amplo espaço livre de discordância legítima entre os crentes.

Esse recato vem em parte das origens históricas da fé. Alguns contrastes com o islã nos ajudam a entender o que significa isso.

  • O fundador do islã governou um estado; o fundador do cristianismo foi morto pelo estado.
  • Os seguidores do primeiro gozaram de poder político desde o começo: controlavam um território, implementavam leis e usavam a força. Os seguidores do segundo passaram trezentos anos sem poder político, como uma comunidade voluntária, transnacional e trans-étnica. É nesse período que as Escrituras normativas foram escritas. Por isso, o cristianismo, via de regra, tem menos “autoconfiança” política do que o islã, se sente menos à vontade para exercer o poder em nome de Deus ou dar “receitas” políticas em nome da fé.

Além disso, o conceito cristão de revelação é que Deus se revelou ao longo do tempo, de várias maneiras e em circunstâncias muito diversas, culminando na encarnação do Filho de Deus. O mundo bíblico  não é só muito distante do nosso mundo, mas houve também vários mundos bíblicos.

  • O Novo Testamento foi escrito para a comunidade cristã primitiva, que era um pequeno grupo transnacional, sem controle de um território, sem acesso ao poder político e sem possibilidade de criar legislação pública. Quem tenta criar uma “política cristã” só do Novo Testamento logo esbarra com esse problema de um certo vazio político, sobretudo num contexto democrático onde os cidadãos são convocados a participar da constituição das autoridades. Daí que surge a posição padrão do cristianismo primitivo: o distanciamento da política.
  • O Antigo Testamento, escrito para uma comunidade nacional que de fato lidava com as questões de território, lei, poder e força, tem que ser lido à luz da revelação cabal de Deus em Cristo. Nenhum país hoje, por mais cristãos que tenha, está na situação de Israel do Antigo Testamento. Por isso, a política cristã é sempre menos segura de si, do que, por exemplo, a maioria de abordagens islâmicas.

Além disso, a política é, como se diz, a arte do possível e os fenômenos políticos de uma sociedade moderna são muito complexos. O resultado disso é que duas pessoas que tiram os mesmos princípios políticos da Bíblia podem, mesmo assim, discordar radicalmente sobre o que é possível e aconselhável fazer hoje no Brasil.

Jesus nos avisou para termos “cuidado com o fermento dos fariseus e dos saduceus” (Mt 16:6). Embora diferentes entre si, ambos  grupos absolutizavam o que deveria ser relativizado à luz de Cristo. Hoje, um exemplo do “fermento dos fariseus e saduceus” é de colocar a fé cristã a serviço de uma determinada posição política. Essa politização da identidade é desastrosa para a igreja, e é idólatra, absolutizando as nossas opiniões relativas e colocando-as no mesmo patamar das doutrinas centrais da fé.

Terceiro Princípio: Distinguir os Debates

Hoje, pelo menos quatro questões se embaralham e a não-separação delas dificulta os debates: a) se a presidente Dilma merece sofrer impeachment; b) sobre a corrupção como problema generalizado na política brasileira; c) preferências partidárias e quem gostaríamos de ver no poder; d) questões ideológicas maiores (neoliberalismo, neoconservadorismo, social-democracia, socialismo etc).

Quarto Princípio: Evitar o Maniqueísmo e Reconhecer as Muitas Posições Possíveis

Não existem apenas duas posições (a favor ou contra o impeachment). Estar preocupado com os procedimentos falhos (no Congresso e nas investigações) não é o mesmo que defender este ou aquele acusado. É perigoso aceitar um processo muito falho só porque os atingidos são os nossos desafetos políticos.

Em parte, os problemas decorrem de um desencontro entre presidencialismo e parlamentarismo. Em um sistema parlamentarista, a primeira-ministra Dilma cairia por um simples “voto de não confiança”, sem necessidade de impeachment. Como o presidencialismo não contempla essa possibilidade, recorre-se ao mecanismo constitucional do impeachment. No entanto, abre-se um precedente perigoso, pois esse mecanismo se destina a situações excepcionais, e não a um simples expediente para remover mandatários impopulares.

Dadas as complexidades do atual processo, devemos reconhecer as múltiplas posturas possíveis no interior da comunidade cristã. E devemos procurar nos inteirar dos melhores argumentos do outro lado, em vez de acreditar nas caricaturas divulgadas por boa parte da mídia.

Quinto Princípio: Passar do moralismo simplista na perspectiva cristã da corrupção

Para cristãos que entendem pouco de política, a corrupção se apresenta como uma questão política aparentemente fácil de entender, pela transferência de valores morais pessoais à esfera pública. Políticos espertos, inclusive cristãos, se aproveitam disso para tentar mobilizar suas bases e justificar sua própria presença nos parlamentos. Mas a visão cristã sobre a corrupção é muito mais sofisticada do que isso.[1]

Dois aspectos se destacam. Primeiro, a visão cristã da natureza radical do pecado, afetando não só todos os indivíduos, mas também todos os grupos e instituições, inclusive igrejas e partidos políticos, sem exceção. Os cristãos são os que deveriam ser menos suscetíveis a qualquer messianismo em torno de pessoas ou partidos; e os cristãos são os que  que menos deveriam se surpreender com os inevitáveis desapontamentos. Em segundo lugar, o cristianismo oferece uma visão equilibrada entre a renovação individual e a renovação institucional. A corrupção se relaciona tanto com instituições quanto com fatores culturais, e essas duas renovações se fortalecem mutuamente no combate à corrupção. A redução substancial da corrupção é obra de muito tempo, e em várias frentes.

Mas há mais. A “comunhão” universal humana no pecado é uma das grandes justificativas da democracia; ninguém merece ter poderes ilimitados e não supervisionados sobre seus semelhantes. É também um dos principais argumentos pela preocupação política com as gritantes desigualdades sociais. A fé cristã é realista: onde houver desigualdade, haverá opressores e oprimidos. Por isso, amar ao próximo inclui o esforço para enfraquecer as estruturas desiguais que engendram a opressão.

Isso nos ajuda a entender o fato de que o combate à corrupção é uma causa política que mobiliza muito mais a classe média do que os mais pobres. Não que estes não reprovem a corrupção ou não entendam a sua importância (afinal, os mais pobres sofrem mais com quase todas as formas de injustiça). Mas, na escala de prioridades políticas das pessoas mais desvalidas da sociedade, não tem a mesma proeminência. Para elas, ainda que a corrupção seja abominada, há mazelas ainda maiores a serem enfrentadas.

A visão cristã do mundo também nos ajuda a lembrar que já estivemos aqui antes (em 1992). A campanha anticorrupção é extremamente necessária, mas não resolverá o problema de uma vez por todas, e certamente será aproveitada para outros fins políticos e econômicos.

Qualquer melhora resultante será apenas temporária se não houver reformas políticas, sobretudo dos sistemas eleitoral e partidário. O sistema eleitoral de representação proporcional com listas abertas é responsável por parte considerável da corrupção política brasileira. (É responsável também pelas grandes “bancadas evangélicas”, o que significa que os políticos evangélicos dificilmente terão um papel construtivo no combate à corrupção.) Além disso, a proliferação de partidos no Congresso piora o problema. Não é tirando Fulano e botando Sicrano que a situação vai se resolver.

Sexto Princípio: Saber distinguir entre um ideal e seu portador

Todos os projetos humanos acabam desapontando, seja um movimento, partido ou igreja. Mas a desilusão com o portador de um ideal não precisa levar ao abandono do ideal em si (assim como a desilusão com determinada igreja não precisa levar ao abandono da fé cristã). É preciso saber criticar e, se necessário, abandonar o portador, sem necessariamente rejeitar o ideal que dizia representar. (Existem, é claro, ideais totalmente irrealistas, os quais desapontarão vez após vez; estes devem ser abandonados. Um ideal maduro, por outro lado, é potencialmente realizável e, ademais, consegue explicar o próprio desapontamento.)

No meio cristão, a tarefa de distinguir entre ideal e portador enfrenta outra dificuldade: o uso tendencioso da palavra “ideologia” como palavrão para criticar os nossos adversários políticos. Eles são “ideológicos”; nós não somos.

Curiosamente, esse uso tendencioso lembra o marxismo (ideologia como falsa consciência que os outros têm). Muito melhor adotar o uso de outras correntes das ciências sociais e dizer que todos nós temos as nossas ideologias, pelo mero fato de sermos seres humanos inseridos em determinado lugar social, com limitações e interesses. Nenhum de nós tem o “olhar de Deus”.

Hoje, enfrentamos duas tentações: a de rejeitar um ideal porque o portador decepcionou; e a de agarrarmo-nos ao portador porque achamos que a sobrevivência do ideal o exige. Ou, para mudar a analogia: a tentação de jogar fora o bebê com a água suja do banho; e a tentação de querer preservar a água suja junto com o bebê.

É importante neste momento não abrir mão de ideais políticos perfeitamente compatíveis com a Bíblia e, aliás, recomendados pela Bíblia, como a justiça e a solidariedade; a priorização dos mais fracos e necessitados para diminuir a extrema desigualdade; o valor fundamental da democracia como reflexo tanto da antropologia cristã como do caráter de Deus expresso na maneira em que trata a humanidade desde o começo, e a maneira em que trata a humanidade reconstituída em Cristo (sintetizado na frase de Gl 3:28: “em Cristo não há homem nem mulher, judeu nem grego, escravo nem livre”); e a rejeição da idolatria tanto do Estado quanto do mercado (parafraseando Mc 2:27: “[2] o ser humano não foi feito para o sábado/Estado/mercado, mas sim o sábado/Estado/mercado para o ser humano”).

Ser cristão significa não se curvar diante de modismos. A história dá muitas voltas e quem subordina sua leitura da fé a consensos sociais passageiros, a supostas “lições claras da história”, descobrirá um dia que essa leitura ficou estranhamente datada. Por isso, devemos afirmar a importância do pluralismo político cristão, em que alguns serão mais de direita, outros mais de esquerda, mas nunca desprezando ou excomungando aqueles de quem discordamos politicamente.

Notas finais

  1. Nota do Editor: Veja o artigo intitulado ‘A Terra é do Senhor! Como tomar uma posição contra a corrupção pode ser uma obra evangélica”, por Dion Forster na edição de julho de 2015 da Lausanne Global Analysis.
  2. Nota do Editor: Ver artigo intitulado “A Economia Restauradora: a pobreza, o futuro da terra e o papel do cristão”, de Richard Gower, na edição de março de 2016 da Lausanne Global Analysis.

Authors' Bios

Paul Freston

Paul Freston é professor emérito de Religião e Política na Balsillie School of International Affairs and Wilfrid Laurier University, Canadá. Ele também é professor colaborador do programa de sociologia na Universidade Federal de São Carlos, Brasil. Dentre seu livros estão: Evangélicos e Política na Ásia, África e América Latina [publicação em inglês] (Cambridge University Press, 2001); Partidos Políticos Protestantes: uma pesquisa global [publicação em inglês] (Ashgate, 2004); (editor) Cristianismo Evangélico e a democracia na América Latina [publicação em inglês] (Oxford University Press, 2008); e (co-editor) A História das religiões na América Latina Cambridge [publicação em inglês] (Cambridge University Press, 2016).

Raphael Freston

Raphael Freston é mestrando em sociologia na Universidade de São Paulo, Brazil. Ele é bacharel em ciências sociais pela mesma universidade.

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