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O único erro dela foi nascer no bairro errado. Por causa do distrito de origem de Kyoko (nome fictício), ela era considerada “burakumin“, uma dos “intocáveis”. Há centenas de anos, esses distritos eram a residência de curtidores, curtumeiros, coveiros e outros profissionais considerados impuros pela sociedade japonesa. Ainda hoje, pessoas de áreas marginalizadas podem sofrer discriminação ao procurar emprego, habitação e cônjuge. Não é raro que os pais usem detetives particulares para investigar os pretendentes de seus filhos. Se for encontrado algum vínculo com burakumin, acabam-se as perspectivas de casamento.

Kyoko aprendeu a ver-se como inferior às pessoas à sua volta. Ela fazia amizade com outros burakumin, mas ficava sempre alerta com pessoas desconhecidas. Ela não conseguia se encaixar, carregava um senso de vergonha por onde fosse.

Quando Kyoko ouviu sobre Deus pela primeira vez, ficou pensando por que ele a fez ser burakumin. No entanto, ao aprender como Jesus “esvaziou-se de si mesmo” e “anulando-se a si mesmo”, ela começou a crer em um Deus que amava japoneses buraku e não buraku igualmente. Ela foi liberta da vergonha.


So You’ve Been Publicly Shamed
porJon Ronson

Humilhação online

A experiência de Kyoko não é uma peculiaridade japonesa. Quando me mudei do Japão para a Austrália, percebi que uma dinâmica semelhante de vergonha, humilhação e rejeição acontece em todos os lugares. Jon Ronson, que escreveu um livro chamado So You’ve Been Publicly Shamed, (“Então, você foi humilhado publicamente”, em tradução livre) sobre o fenômeno da humilhação online, acredita que estamos passando pelo grande renascimento da humilhação pública’:[1]

Ronson dá o exemplo de Justine Sacco, a executiva de relações públicas americana que foi publicamente ridicularizada na Internet depois de uma piada de mau gosto que “arruinou sua vida”,[2] e Adria Richards, que enfrentou retaliação após humilhar dois programadores que se comportaram de forma inapropriada em uma conferência. (tradução livre)

Aqui na Austrália, um homem de Melbourne teve seu nome manchado depois que uma falsa acusação contra ele foi compartilhada milhares de vezes no Facebook.

As redes sociais deram um megafone a cada usuário. É possível destruir a reputação de uma pessoa em segundos através de um tweet viral. Como resultado, estamos todos mais sensíveis à vergonha e ao poder da humilhação.

As redes sociais deram um megafone a cada usuário. É possível destruir a reputação de uma pessoa em segundos através de um tweet viral. Como resultado, estamos todos mais sensíveis à vergonha e ao poder da humilhação.[3]

Reações típicas em humilhações

Roberto (nome fictício) mudou-se da América do Sul para a Austrália há doze anos. Ele fala um inglês razoável com um forte sotaque hispânico, apesar de seus filhos falarem inglês tão bem quanto seus amigos australianos. Há algum tempo, ele foi vítima de discriminação por parte dos colegas na escola em que trabalhava. Após relatar o abuso à gerência e passar por um processo de mediação, não demorou muito para que Roberto fosse demitido. Ele está desempregado no momento, com vergonha de seu inglês, de sua incapacidade de prover para sua família e do isolamento que passa como estrangeiro.

Alguns amigos tentaram compartilhar o Evangelho com ele, mas ele não se identificou com a ideia de que Deus o limpa de seu pecado: ele não se vê como pecador, mas como alguém que foi vítima do pecado de outros. O que o Evangelho significa para Roberto?

 Se fomos humilhados pela sociedade, nós nos afastamos da sociedade.

Primeiro, vamos ouvir o que Roberto e Kyoko disseram sobre suas situações: “eu queria desaparecer”, “queria ficar em casa e nunca mais sair”, “teria sido melhor se eu nunca tivesse nascido”. Tais afirmações, de acordo com o psicólogo Michael Lewis, são reações clássicas ao sentimento de vergonha e humilhação. Quando sentimos vergonha, queremos fugir, nos esconder, ficar longe da situação ou das pessoas que nos humilharam. Não podemos tirar a vergonha de dentro de nós, então, nos afastamos daquilo que nos causa vergonha. Se fomos humilhados pela sociedade, nós nos afastamos da sociedade.

Günter Seidler descreve a experiência de vergonha como o desejo de “ficar invisível, ou em casos extremos, de ser extinto’.[4] De forma figurativa, nós colocamos a pessoa envergonhada em uma posição de não existência, sentenciamos os humilhados à morte. Ronson escreve como as vítimas de humilhação pela Internet falam sobre si mesmas como “destruídas”, “aniquiladas” e “mortas”’.[5]

20-30K

Japoneses dão fim
à sua própria vida todos os anos

Em alguns países, isso é mais do que uma metáfora. No Japão, um indivíduo que é envergonhado ou humilhado geralmente se retira da sociedade por um ostracismo autoimposto ou até mesmo pelo suicídio. Todos os anos, cerca de 20 a 30 mil japoneses tiram a própria vida. Os motivos são variados, e a relativa escassez de serviços de saúde mental no Japão significa que a depressão clínica não é tratada da mesma forma que no Ocidente. No entanto, entre o complexo emaranhado de razões pelas quais os japoneses se suicidam, os mais comuns parecem ser preocupações financeiras e com o trabalho. A perda de emprego e o insucesso financeiro, atrelados ao sentimento de incapacidade de prover meios para a própria família, trazem um senso de vergonha impossível de suportar.

No Oriente Médio, a morte também é usada por vezes como solução para a vergonha. Em 16 de março de 2008, Rand Abdel-Qader, foi esfaqueada até a morte pelo próprio pai no Iraque. Seus irmãos ajudaram em seu assassinato e a jogaram em uma vala, enquanto seus tios cuspiam em seu cadáver. Ela trouxe vergonha à família por ter conversado com um soldado britânico. A única forma de recuperar a honra da família era eliminar da sociedade o corpo vergonhoso da jovem.

Batismo como morte e renascimento

Quando compartilhamos o Evangelho do perdão dos pecados e da restauração dos relacionamentos, geralmente deduzimos que a vida da pessoa só precisa de alguns pequenos reparos. Jesus retira os nossos pecados e a vida segue. No entanto, se olhamos para o Evangelho pregado por Paulo, encontramos algo muito mais radical: você morreu. Sua vida até este ponto acabou. Ao mergulhar nas águas do batismo, você é unido a Cristo em sua morte. Ao emergir da água, você é unido a Cristo em sua ressurreição e recebe uma nova vida e uma nova identidade. Cristo dá aos humilhados exatamente o que eles desejavam: o dom da morte.

O batismo como morte e renascimento é uma imagem poderosa para aqueles cuja velha vida é repleta de vergonha. Na verdade, sempre foi assim: entre os séculos II e IV, os convertidos ao cristianismo eram batizados nus. Cirilo de Jerusalém explica a ligação entre nudez, batismo e a retirada da vergonha:

Logo que entrastes, despistes a túnica. E isto era imagem do despojamento do velho homem com suas obras. Despidos, estáveis nus, imitando também nisso a Cristo nu sobre a cruz. Por sua nudez despojou os principados e as potestades e no lenho triunfou corajosamente sobre eles.  (…) Estáveis nus à vista de todos e não vos envergonhastes. Em verdade éreis imagem do primeiro homem Adão, que no paraíso andava nu e não se envergonhava.[6]

A igreja como solução dada por Deus

Mas como a morte e o renascimento espiritual ajudam Roberto e Kyoko na prática? Roberto ainda está desempregado. Kyoko continua sendo parte de um grupo marginalizado.

A resposta é que a vergonha é um problema comunitário, acontece porque minha identidade deriva das pessoas ao meu redor, assim como Adão e Eva, que desviaram os olhos de seu Criador e tiveram seus olhos abertos para o outro. A vergonha só é um problema por causa da opinião de meus iguais, do grupo a que pertenço e das pessoas que valorizo. As opiniões podem não mudar, mas as pessoas certamente são mudadas. O batismo não só sepulta o velho homem, mas também abre portas para uma nova comunidade: a comunidade do povo de Deus.

O Evangelho não apenas muda quem somos, ele nos dá uma nova sociedade, uma nova família. Em nossa nova família, somos aceitos sem qualquer vergonha.

Norman Kraus, antigo missionário no Japão, escreveu que, ao lidar com a vergonha, “o novo padrão de relacionamentos é uma parte essencial do próprio Evangelho da salvação”’.[7] O Evangelho não apenas muda quem somos, ele nos dá uma nova sociedade, uma nova família. Em nossa nova família, somos aceitos sem qualquer vergonha.
É por isso que é tão importante que o povo de Deus evite o jogo de humilhação e relacione-se com os padrões determinados por Deus, não pela sociedade. A primeira carta de Paulo aos coríntios é repleta de advertências sobre os perigos do sectarismo, do julgamento e da comparação na comunidade cristã. Em vez disso, Paulo substitui esses elementos com a imagem do corpo, que trabalha junto, em que os membros mais frágeis são indispensáveis e os membros mais envergonhados são tratados com uma honra especial.

A partir disso, podemos ver que a própria igreja tem um papel fundamental na solução dada por Deus para a humilhação. Cristo oferece uma nova vida à pessoa que sofre humilhação, a igreja oferece um novo ambiente para viver. Quando essas duas coisas acontecem, a verdadeira liberdade torna-se possível.
Agora, Kyoko se tornou missionária na Índia, ajudando outro grupo de “intocáveis” a ver que Jesus não se envergonha deles. Roberto ainda não é cristão, mas encontrou um grupo de homens cristãos com quem continua a caminhar. Esses homens não veem sua situação como desempregado ou imigrante, mas como ele realmente é: alguém criado à imagem de Deus.


Os Intocáveis da Índia, Malabar, Kerala (1906).

Notas de fim

  1. J. Ronson, So You’ve Been Publicly Shamed (London: Picador, 2015), 9.
  2. Ibid., 69.
  3. Nota do editor:  Consulte o artigo de Jayson Georges intitulado “As boas novas para as culturas de honra e vergonha”, na edição de março de 2017 da Análise Global de Lausanne. https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2017-03-pt-br/as-boas-novas-para-as-culturas-de-honra-e-vergonha
  4. G. H. Seidler, G H, In Other’s Eyes: An Analysis of Shame (Madison, CT: International Universities Press, 2000), 207.
  5. Ronson, So You’ve Been Publicly Shamed, 175.
  6. Cyril of Jerusalem, Mystagogical Cathecisis II – On the Rites of Baptism, 59-60.
  7. C. N. Kraus, Jesus Christ Our Lord: Christology from a Disciple’s Perspective (Scottdale, PA: Herald Press, 1990), 241.

Photo credits

Feature image from ‘THE “ETA 穢多”, “BURAKUMIN 部落民”, and “HININ 非人” – The Non-Human Outcasts of Old Japan‘ Source: Okinawa Soba (Rob) (CC BY-NC-ND 2.0).

Simon Cozens é missionário da WEC International. Após sete anos como plantador de igrejas no Japão, foi professor por três anos em uma faculdade de treinamento missionário na Tasmânia e retornou ao Reino Unido. Seu livro, Looking Shame in the Eye (“Olhando a vergonha nos olhos”, em tradução livre), será publicado pela InterVarsity Press em meados de 2019.