Global Analysis

Descolonizando a missão

aprendendo com o modelo de sofrimento e sacrifício dos países em desenvolvimento

Israel Oluwole Olofinjana set 2020

Este artigo[1] explora a relação entre missão e sofrimento com um enfoque especial em como discipular as pessoas durante e após a COVID-19. A pandemia tem sido em escala global, afetando, no momento em que este artigo foi escrito, 213 países, causando múltiplas mortes, perda de comunidade, perda de empregos, aumento dos problemas de saúde mental e aumento da ansiedade e do medo. Ela trouxe um sofrimento sem igual a milhões de pessoas ao redor do mundo e, portanto, fica a pergunta, como a igreja pode responder a este sofrimento global? Talvez mais sucintamente, como a igreja deveria fazer missão em um contexto de sofrimento e perda?

Este modelo de sofrimento já existente é um ingrediente essencial na descolonização dos modelos ocidentais de discipulado e missão.

Além disso, a COVID-19 também afetou todas as áreas da vida, incluindo política, saúde, medicina, negócios, educação, esportes, a indústria de entretenimento e mídia e, é claro, a igreja! Se a COVID-19, com suas consequências, afetou a forma como vemos o mundo em cada área da vida e durará algum tempo, será que ela inspirou um novo paradigma que requer um novo modelo de discipulado e missão?

Este artigo argumenta, portanto, usando o modelo de discipulado de Jesus de sofrimento e sacrifício, propondo a necessidade de envolver as teologias dos países em desenvolvimento cujas experiências de sofrimento histórico e contemporâneo são um modelo pronto para ser usado. Este modelo de sofrimento já existente é um ingrediente essencial na descolonização dos modelos ocidentais de discipulado e missão.[2]

Sofrimento e sacrifício: marcas registradas do discipulado de toda a vida

A questão crucial com a qual tenho lutado é, se o modo de vida de Jesus inclui sofrimento e sacrifício, como nosso discipulado integral pode girar em torno desses conceitos? Queremos ser seguidores de Jesus, mas somente quando for conveniente ou quando estivermos nos beneficiando do relacionamento. Entretanto, o chamado imperativo de Jesus a seus discípulos foi: “se alguém quiser seguir-me, deve negar-se a si mesmo e carregar sua cruz” (Mt, 16:24; Mc 8:34; Lc 9:23). Negar-nos numa sociedade consumista, materialista e individualista envolveria sofrer e carregar a cruz significaria que estamos prontos a nos sacrificarmos até a morte pela causa do Reino de Deus.

A implicação disto é que se nossos programas e eventos de discipulado não prepararem os cristãos para entenderem e viverem com o sofrimento e sacrifício, eles só seguirão Jesus quando tudo estiver indo bem. Como resultado, quando as coisas realmente ficarem difíceis, eles se afastarão de Deus. Por outro lado, se seguimos Jesus como o único estilo de vida, e não como um estilo de vida opcional nos momentos convenientes e confortáveis, colocamos cada parte de nossa mente, vontade e emoções e todos os aspectos de nossas vidas – emprego, família, educação, hobbies, finanças – diante de Deus para que ele nos use como ele quiser e quando nos chamar.

Depois que Jesus ensinou seriamente sobre o que significa acreditar e segui-lo, muitos dos judeus o deixaram. Então, ele fez aos discípulos uma pergunta importante: “Vocês também não querem ir?” (Jo 6: 67 NVI). A resposta de Pedro a essa pergunta é muito importante para nosso discipulado atual. Ele disse a Jesus: ‘Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna” (Jo 6:68 NVI). A resposta de Pedro é condicionada pela compreensão de que seguir Jesus mesmo quando é difícil não é um estilo de vida opcional, mas que a sua própria sobrevivência depende disso. A narrativa muda quando vemos o discipulado não como uma forma de vida alternativa, mas sim sabendo que nossa própria sobrevivência depende disso.

Um novo paradigma: um novo modelo de discipulado

Como mencionado anteriormente, a COVID-19 e suas consequências estão reenquadrando a forma como vemos a realidade, mudando e desafiando tudo o que sabemos. Esta mudança não será apenas por alguns meses, mas segundo muitas projeções atuais serão mudanças que continuarão nos próximos anos. Isso não é necessariamente o novo substituindo e descartando totalmente o velho, mas um novo paradigma, uma nova compreensão de nossa realidade existencial.


Transforming Mission: Paradigm Shifts in Theology and Mission, 20th Anniversary Edition por David Bosch

David Bosch, seguindo a teoria do paradigma de Thomas Kuhn, observou as várias mudanças de paradigma na teologia e na missão durante as diferentes eras do cristianismo: o Cristianismo Primitivo, o Período Patrístico, a Idade Média, a Reforma, o Iluminismo e a era Ecumênica.[3] A teologia moderna e a missão enraizadas nas tradições do Iluminismo moldaram por tanto tempo nosso modelo de discipulado. O resultado é um modelo de discipulado que é dicotomizado e influenciado pelo mito do progresso, um padrão de discipulado que compartimentaliza nossas vidas de modo que o cristianismo parece ser relevante no domingo, mas perde a relevância entre a segunda e sexta-feira no local de trabalho. Além disso, a característica consumista da vida moderna/pós-moderna moldou nosso discipulado com as ideias de opções, progresso e ganância.

Embora a igreja emergente do contexto pós-moderno com seu modelo de discipulado de vida integral e expresso através de comunidades[4] missionárias tenha desafiado este modelo anterior de discipulado, ele não foi, no entanto, completamente desconstruído. É aqui que a análise penetrante de Michael Stroope sobre a linguagem da missão problemática por causa de sua falta de uso no texto bíblico e sua ligação com a conquista e o colonialismo se torna muito útil.[5] Apesar de ainda não abandonar a linguagem da missão, a tese de Stroope nos permite descolonizar a missão e o discipulado. No entanto, um ingrediente-chave que falta neste processo de descolonização é uma perspectiva externa que não é moldada por uma visão de mundo iluminista. É aqui que as ideias de alguns dos cristãos de países em desenvolvimento são necessárias para o discipulado e a missão.

Portanto, uma questão crucial é, se o coronavírus expôs que a vida é de fato temporal e que o sofrimento e a dor são reais, de que tipo de discípulos precisamos para discipular os outros neste contexto?

As ideias de sofrimento e sacrifício são relativas. O sofrimento dos cristãos dos países em desenvolvimento que são refugiados, requerentes de asilo e imigrantes econômicos será muito diferente do dos cristãos brancos da classe média europeus. Não estou defendendo a ideia que os africanos, asiáticos ou latino-americanos tenham o monopólio sobre a dor e do trauma. O que estou ressaltando é o fato de que a história de alguns países em desenvolvimento (na África, Ásia, América Latina e Caribe) demonstram que certas regiões do mundo sofreram injustiças sistêmicas e institucionais como o tráfico de escravos, trabalhos forçados, imperialismo, colonialismo e o neocolonialismo. Portanto, isto faz com que os cristãos dos países em desenvolvimento estejam acostumados ao sofrimento e à dor. Além disso, os legados destas injustiças institucionais continuam na vida de tantas pessoas dos países em desenvolvimento. Um exemplo recente é a representação desproporcional de pessoas de minorias étnicas negras e asiáticas (BAME) na linha de frente da saúde no Reino Unido, que levou à morte de muitas pessoas do grupo BAME durante a pandemia. Apesar de o coronavírus afetar a todos, sejam ricos ou pobres, brancos ou negros, tornou-se óbvio a partir dos dados do Escritório de Estatísticas Nacionais e Saúde Pública da Inglaterra que ele apresenta um risco maior para as comunidades mais pobres, incluindo as pessoas BAME.[6]

Perspectivas da teologia sobre o discipulado integral dos países em desenvolvimento

Tendo argumentado que as pessoas dos países em desenvolvimento parecem sofrer mais devido às questões sistêmicas e estruturais do nosso mundo injusto, isso então fornece um modelo pronto para a igreja global aprender com as teologias desses países sobre modelos de discipulado enraizados no sofrimento e sacrifício causados pela desigualdade econômica social. Muitas dessas teologias contextuais têm origem no contexto da perda e da dor. Um exemplo é a teologia da libertação, que foi desenvolvida no contexto da pobreza socioeconômica da América Latina, quando a Igreja Católica se posicionou ao lado dos pobres e dos marginalizados.[7]


Born from Lament: The Theology and Politics of Hope in Africa por Emmanuel Katongole

No contexto africano, a teologia negra surgiu no sul da África para desafiar a injustiça sistêmica causada pelo regime do apartheid. A teologia política africana que foi desenvolvida em outros lugares do continente também tem algo a oferecer em termos da teologia do lamento. Um exemplo importante é o trabalho do teólogo católico romano ugandense Emmanuel Katongole que, em seu livro, fala do mal e do trauma do recente conflito no Congo e da necessidade de saber como se lamentar.[8] Se há algo em comum nestas teologias, é que elas tomam o sofrimento dos pobres e dos oprimidos como sua lente hermenêutica e, portanto, sua compreensão do discipulado está enraizada na humildade e sacrifício de Jesus e como isso moldou sua práxis ministerial.

Os cristãos de países em desenvolvimento que se mudaram para a Europa ou América do Norte através de vários fatores migratórios vão com esta noção e experiência de discipulado. Os cristãos da diáspora entendem através da experiência própria, que o discipulado de toda a vida implica em diferentes tipos de sofrimento e exige sacrifício. Se a igreja pretende fazer o discipulado e a missão direito neste clima de coronavírus, precisamos captar a compreensão de Jesus sobre sofrimento e sacrifício. Parte dessa missão significará usar a noção da teologia da libertação de responder intencionalmente em solidariedade com os pobres que são os mais afetados durante esta crise.

Várias organizações igrejas e agências missionárias ocidentais independentes de igrejas já estão engajadas no discipulado integral, mas o que eu acho que está faltando são as vozes dos irmãos de países em desenvolvimento nessas conversas e organizações. Estou bem ciente de tantos que não se engajaram adequadamente com os pontos de vista dos teólogos dos países em desenvolvimento em seus programas de discipulado de toda a vida ou não empregaram pessoas desses países em suas organizações. Parece-me que no clima atual e pós-coronavírus, será importante consolidar nossos recursos e encontrar formas pragmáticas de parceria para que nossas atividades de discipulado possam ser enriquecidas pelas experiências dos cristãos dos países em desenvolvimento, incluindo os da diáspora no Ocidente. O que poderia ser mais emocionante do que ouvir as vozes dos teólogos africanos e latino-americanos em nossas apologéticas ocidentais, conversas missionárias na igreja e no treinamento de discipulado integral?[9]

 precisamos de uma parceria igualitária que envolva as vozes dos teólogos dos países em desenvolvimento no movimento de discipulado integral ocidental.

Observações finais

Este breve artigo sobre a exploração das oportunidades e desafios do novo contexto que a COVID-19 nos apresenta e como respondemos como pessoas de fé. Considerei particularmente o sofrimento e o sacrifício de Jesus como marcas do discipulado integral necessário para compreender a dor e a perda causada pela COVID-19. Estas características de discipulado são fortemente defendidas nas teologias das igrejas dos países em desenvolvimento por causa de sua experiência com as injustiças socioeconômicas. Minha sugestão é que a igreja mundial possa aprender com os cristãos dos países em desenvolvimento na compreensão de um modelo de discipulado integral enraizado na liminaridade e humildade. Para que isso aconteça, precisamos de uma parceria igualitária que envolva as vozes dos teólogos dos países em desenvolvimento no movimento de discipulado integral ocidental.

Notas

  1. Uma versão preliminar desse artigo foi publicada em maio de 2020 como um artigo na página Hope 15:13 https://hope1513.com/2020/05/06/coronavirus-a-new-paradigm-for-discipleship-and-mission-by-rev-israel-oluwole-olofinjana/
  2. Eu estou usando a descolonização da missão no sentido de como os pensamentos ocidentais deram forma e colonizaram nosso pensamento sobre missão durante anos. Descolonizar a missão significa observar como os cristãos dos países em desenvolvimento compreendem o discipulado e missão.
  3. David Bosch, Transforming Mission: Paradigm Shifts in Theology and Mission, 20th Anniversary Edition (Maryknoll, New York: Orbis Books, 2014), 187-92.
  4. Missional communities as defined by the Gospel and Culture network are communities called to represent the compassion, justice, and peace of the reign of God. The distinctive characteristic of such is that the Holy Spirit creates and sustains them. See Darrell L Guder (ed), Missional Church: A Vision for the sending of the Church in North America (Grand Rapids, MI, Wm. B. Eerdmans Publishing, 1998), 142.
  5. Michael Stroope, Transcending Mission: The Eclipse of a Modern Tradition (London, Apollos an imprint of Inter-Varsity Press, 2017).
  6. Discrimination on the front line of the coronavirus outbreak may be a factor in disproportionate BAME deaths among NHS staff, accessed 14 May 2020, https://www.itv.com/news/2020-05-13/discrimination-frontline-coronavirus-covid19-black-minority-ethnic-bame-deaths-nhs-racism/.
  7. See as an example, Gustavo Gutierrez, A Theology of Liberation (London: SCM Press, 1974).
  8. Emmanuel Katongole, Born from Lament: The Theology and Politics of Hope in Africa (Grand Rapids: Eerdmans Publishing, 2017). See also Cathy Ross, ‘Lament and Hope’, accessed 6 May 2020, https://churchmissionsociety.org/resources/lament-and-hope-cathy-ross-anvil-vol-34-issue-1/.
  9. Nota da Editora: Veja o artigo de Stian Sørlie Eriksen: “A relação entre igrejas maioritárias e igrejas de imigrantes no ocidente”, na edição de julho de 2019 da Análise Global de Lausanne https://lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2019-07-pt-br/relacao-entre-igrejas-maioritarias-e-igrejas-de-imigrantes-no-ocidente