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Paz às Nações [Zacarias 9:10]: Etnia na Missão de Deus

Dewi Hughes 07 mar 2016

Observação do Editor: Este Documento Avançado de Cape Town 2010 foi escrito por Dewi Hughes para dar um panorama geral do tópico a ser discutido na Sessão Multiplex sobre “Etnia e Identidade”.  Comentários sobre este documento através da Conversa Global Lausanne serão enviados para o autor e para outras pessoas, e ajudarão a dar forma à apresentação final que farão no Congresso. 

Quando uma sessão sobre etnia começa e pedimos ao público para registrar as primeiras palavras que vêm à mente quando ouvem a expressão ‘étnica’, ‘etnia’ ou ‘identidade étnica’, normalmente a palavra mais comum é ‘conflito’. De fato, a maioria das palavras que vêm à mente são negativas. Portanto, não é de estranhar que muitos evangélicos consideram o tópico etnia perigoso e/ou e causa de divisão entre as partes da identidade humana, e que deva ser menos enfatizado, ou até evitado. E ainda assim, muitos cristãos amam sua identidade étnica e a veem como uma dádiva de Deus.

Antes de investigar o que a Bíblia diz sobre etnia, algumas definições podem ser úteis.

Definições de etnia:  As definições a seguir refletem o pensamento atual:

A transliteração do plural grego ethnos é ethne, traduzida como “nações” ou “gentios”, nas Bíblias em inglês. Ethnos [singular] e ethne [plural] serão usados como substantivos neste documento, como no original em inglês.

Ethnos – Um tipo de comunidade com uma consciência de ser um povo distinto de todos os outros com as seguintes características:

  • um nome próprio em comum;
  • a crença de um antepassado  comum;
  • uma história comum, lembranças de um passado comum;
  • elementos de uma cultura comum, como a linguagem, os costumes, a cultura material, religião;
  • uma ligação com a pátria
  • um sentimento de solidariedade.

 “Minorias Étnicas” – Ethne que por diversas razões, como a migração ou transporte forçada (escravidão), estão dispersas em um estado.

 “Minorias Nacionais” ou “Povos Indígenas” – Ethne que foram oprimidos e marginalizados em seu território ancestral.

À luz dessas definições, o termo “nação” torna-se problemático, especialmente no contexto de seu uso comum. Por exemplo, muitos chamam o Reino Unido de uma “nação”, embora, de acordo com as definições acima, o Reino Unido seja um país ou um Estado-nação formado por três nações minorias – povos indígenas, uma maioria nacional  dominante e muitas minorias étnicas. De acordo com essas definições, um “estado-nação” – implicando um Estado governando sobre uma nação – dificilmente existe. Coreia (Norte e Sul) e Lesoto são raros exemplos de estados que são quase totalmente compostos com uma só ethnos.

A grande maioria dos países do mundo têm muitas ethne, embora em muitos estados multi-étnicos haja uma etnia dominante. Para ilustrar o que significam as definições para um estado individual, pode ser útil considerar o seguinte exemplo típico de um estado pós-colonial:

Uganda – tem mais de 50 ethne em quatro divisões principais. A maior divisão é o Bantu, localizado na metade sul do país, que representa mais de 60% da população, o que equivale a quase metade da ethne no país. A maior etnia é a Baganda, que domina a área ao redor da capital, Kampala, embora representem menos de um quinto da população do país. Os Baganda são duas vezes mais numerosos que qualquer outra etnia bantu, apesar de alguns deles – como o Bankole, Bakiga e Basoga – terem populações de um a dois milhões. A segunda maior divisão é Nilotic, concentrada na metade norte do país, compondo cerca de um quarto da população, divididos entre 18 ethne incluindo os Iteso, Acholi e Karamajong. A terceira divisão, que representa apenas 5% da população, é a ethne Sudanic do nordeste. Mas mesmo eles estão divididos em mais oito ethne. A divisão final, de cerca de 2%, é composta por imigrantes de países vizinhos, e uma crescente comunidade asiática.

Ethne no Pensamento Moderno
De acordo com os historiadores ocidentais modernistas e filósofos políticos, o modelo de Estado-nação que caracteriza o mundo moderno surgiu no século XVIII, quando a filosofia política do Iluminismo foi colocado em prática na formação dos EUA e da França pós-revolucionária. A liberdade e a igualdade que esses novos Estados-nações ofereciam era a igualdade de participar no processo político e a liberdade de participar das atividades econômicas. Abandonar as distinções étnicas era parte do preço que se acreditava ter de ser pago por essa liberdade e igualdade. Assim, a liberdade e igualdade nos EUA foram negadas aos nativos americanos, como nativos americanos. Na França, por exemplo, os bretões e os bascos, que tinha preservado sua identidade dentro do estado monárquico francês, foram brutalmente reprimidos pela irmandade dos revolucionários. O mesmo padrão foi adotado em outros Estados europeus quando adotaram o padrão iluminista. No Reino Unido, houve um movimento de renovação para suprimir as identidades dos irlandeses, escoceses e galeses.

Até meados do século 20, a eliminação da distinção étnica foi considerada altruísta. Acreditava-se que a diversidade era um obstáculo para o desenvolvimento de uma sociedade democratizada e industrializada e que levaria a uma maior prosperidade e felicidade para um maior número de cidadãos. Subjacente a esta ideia estava a convicção de que as necessidades primárias das pessoas eram físicas, e que quando as pessoas vissem as vantagens da uniformidade certamente ficariam mais do que felizes em abandonar suas identidades étnicas. Essa crença política modernista previu com confiança o fim da identidade étnica na sequência da sua ênfase nos direitos de igualdade para cada cidadão do Estado, independentemente da sua identidade étnica, e correspondente crescimento em termos de prosperidade material para cada um dos cidadãos. Contudo, isso não aconteceu.

Essa foi a crença política em que os Estados pós-coloniais foram estabelecidos. Sua independência baseou-se na eliminação da distinção étnica. Dada esta premissa, não é de estranhar que o fracasso de muitos destes Estados-nação pós-colonial seja apontado como culpa de seus etnocentrismos ou tribalismos.

No entanto, desde meados do século 20 o paradigma modernista, especialmente nos países ocidentais, tem mudado. Multiculturalismo, que é muito mais positivo em relação à distinção étnica, tornou-se política de estado em muitos países. Na Europa, isso levou a uma medida de concessão à autonomia de alguns ethne indígenas, como catalães na Espanha, e os escoceses no Reino Unido. Isso pode ser o início de um paradigma pós-modernista do Estado-nação no Ocidente.

Ethne na História Bíblica da Missão de Deus
O livro bíblico das origens (Gn 1-11) termina com um relato das origens da ethne (Gênesis 10:1-11:9). Em Gênesis 10, a existência de ethne é visto como um resultado direto do desenrolar da ordem de Deus para os seres humanos originais para multiplicar e encher a terra.(1) O cumprimento desta ordem é interrompida duas vezes. A primeira interrupção é o dilúvio, que destrói a maioria da humanidade. Após o dilúvio, Deus reafirma seu comando para a humanidade “multiplicai-vos; povoai abundantemente a terra, e multiplicai-vos nela.” (2)A evidência de que esta ordem foi efetiva encontra-se na lista das nações em Gênesis 10. Conforme as famílias dos filhos de Noé tornaram-se mais numerosas, diversas pressões sociais, econômicas e outros levaram alguns clãs a ir em busca de um novo local onde seria melhor viver. Muito cedo na história da humanidade alguns até cruzaram o mar(3) nesta busca para que, em tempo, povos distintos vieram a existir e “espalharam-se em seus territórios, por seus clãs dentro de suas nações, cada uma com sua própria língua.” (4)

Em discussão acadêmica contemporânea sobre o assunto, é interessante que as “nações” de Gênesis 10 correspondem muito às principais características do ethne. Muitos dos nomes em Gênesis 10 situam-se entre um nome próprio para um grupo étnico e o nome de um antepassado. Por exemplo, Jafé, o filho de Gomer, é um nome próprio de um povo indo-europeu que viveu no sul da Rússia, e Madai ou Medos é o nome próprio de um povo indo-iraniano. (5)Nos versos 8 a 12 há uma pausa na genealogia para contar a história de Ninrode, um dos descendentes de Cuche, filho de Ham, que foi o fundador da Babilônia e Nínive, na Mesopotâmia. Este é um bom exemplo do tipo de memória histórica que forma uma identidadeétnica. A diversidade de línguas que se seguiu à dispersão é mencionada após a genealogia de cada filho de Noé, enquanto alguns dos nomes da lista são também os nomes dos territórios. Mizraim / Egito, Seba, Havilá e Dedã são exemplos de territórios conhecidos. A única característica de ethne da lista que não é claramente vista em Gênesis 10 é o sentimento de solidariedade – mas onde os outros cinco fatores existem a solidariedade é inevitável.

O registro da formação de ethne em Gênesis 10 é completado com a história da Torre de Babel, em Gênesis 11:1-9. Os eventos de Babel explicam que o que parecia ser um processo perfeitamente “natural” em Gênesis 10 foi, de fato, profundamente afetado pela maldade humana por toda parte.

A construção da Torre de Babel é a segunda interrupção na história da dispersão da humanidade. No início de sua história depois do dilúvio, vemos os seres humanos com uma linguagem, mudando ao leste de Ararat até que eles chegaram à planície ampla e fértil da Mesopotâmia. Ali se estabeleceram e se multiplicaram em número e em competências. A fim de fazer um nome para si mesmos, eles começaram a construir uma torre que chegasse ao céu. Esta é provavelmente a primeira proclamação de um império na história da humanidade com, neste caso, uma cidade que pretende dominar o resto da humanidade, e, no processo, tenta usurpar a posição que só pertence a Deus. Pretenderam que a cidade e sua torre também fosse um centro magnético de poder que iria impedir que as pessoas se distanciassem umas das outras, e não saíssem para povoar a terra como Deus queria. Vendo que uma humanidade unida, com uma linguagem, teria uma capacidade infinita para a rebelião, Deus confundiu sua linguagem, dificultando a sua capacidade de comunicar-se livremente e cooperar uns com os outros, em oposição à vontade de Deus. Com a sua capacidade de compreender e comunicar prejudicada, a sua capacidade de resistir a Deus e sua vontade também foram prejudicadas. Sem a compreensão, a colaboração era impossível. Assim, a torre foi abandonada e a humanidade dispersa em todas as direções “sobre a face de toda a terra”. O resultado final foi exatamente o que Deus tinha previsto inicialmente para a raça humana, ou seja, toda a terra deve ser povoada com as pessoas de diversas etnias. Refletindo sobre os capítulos de Gênesis 10 e 11, só podemos concluir que a formação de diferentes ethne era uma parte da providência de Deus, mas que esse processo também foi marcado pelo pecado, como todo o resto desde a queda.

Há um contraste notável entre a história da Torre de Babel e o início da História da Redenção no chamado e na vida de Abraão. Os habitantes de Babel se prepararam para fazer seu próprio nome grande e estavam dispostos a impedir o desenvolvimento de seu ethne para atingir seu fim. Deus faria o nome de Abraão grande e, no processo, abençoaria as nações. A opressão ou eliminação da ethne foi o caminho de Babel e a antítese completa da bênção que Deus queria para eles através da semente de Abraão, Jesus.

Passagens como Deuteronômio 2:9-12, 19-23; 32:8; Jeremias 18:1-10 e 27:1-7 testemunham do controle soberano de Deus da ethne. (6) No Novo Testamento, Paulo afirma em seu sermão em Atenas para os intelectuais do Areópago que todas as nações são descendentes de Adão e que Deus tem supervisionado – e continuará a fazer isso – a sua formação, seu alcance geográfico e seu fim. (7)Em primeiro lugar, entendendo a soberania de Deus sobre a ethne, com uma visão de longo prazo, sabemos que as nações não são entidades permanentes. Elas nascem, crescem, desenvolvem, declinam e morrem como seres humanos. Portanto, não há espaço para a idólatra absolutização da etnia, como acontece no nacionalismo ideológico. Em segundo lugar, Deus tem um propósito moral no trato com a ethne / nações. Por exemplo, o arrependimento pode salvar uma nação do total esquecimento (Jeremias 18:7-10; Jonas 3) e uma nação pode ser usada por Deus para castigar outra nação pelo seus pecados, embora a última ideia nunca deva ser usada por uma nação para justificar seus atos de agressão ou guerra contra outro povo (Deuteronômio 9:4-5). (8)

O Novo Testamento se concentra em dois outros temas com raízes no Antigo Testamento. Por um lado, as nações recebem um convite para, em seguida, receberem com alegria as boas novas do Reino de Deus, profeticamente introduzido em Deuteronômio 2, tal como as nações nos últimos dias, reunindo-se a Sião, para apresentar os seus dons a Deus. (9) A conclusão dessa profecia do Antigo Testamento aparece na visão de João da glória celestial no Novo Testamento, em Apocalipse 21:24-22:05. Por outro lado, como um contraponto do tema, as nações conspiram para destruir o Reino de Deus. O livro do Apocalipse, mais uma vez ecoando profecia do Antigo Testamento, descreve isso como a batalha do Armagedom, a batalha final entre o império mundano que destrói a ethne e o rReino do Cordeiro que abençoa a ethne. Até o conflito final, não deve haver nenhuma dúvida sobre as nossas aspirações como seguidores do Cordeiro – que deveríamos estar envolvidos em abençoar, e não em destruir a ethne.

Em Apocalipse 7:9, temos uma bela imagem da essência do que a Bíblia ensina sobre as nações. João vê pessoas de todas as nações, tribos, povos e línguas todos vestidos de vestes brancas, em pé diante do trono do Cordeiro. Todas as ethne estarão unidas em Jesus e sua justiça/retidão. Mas esta unidade não vai destruir a sua particularidade, pois será homenageado e distinguido como membros de diferentes nações/ethne. Em Jesus, o Messias, temos uma unidade que não destrui as diversidades e uma diversidade que não prejudica a unidade.

Ethne na teoria e prática em missões evangélicas no mundo moderno
Não existe uma visão bíblica coerente de etnia/nação na missiologia evangélica atual. O que temos, por um lado, é uma aceitação acrítica da filosofia política moderna e, por outro lado, algumas práticas missionárias que a contradizem. A condenação frequente do nacionalismo/tribalismo por líderes evangélicos é prova da aceitação da filosofia política moderna, ao mesmo tempo em que existe um contínuo esforço para traduzir a Bíblia para todas as línguas, um exemplo de práticas missionárias que contradizem esta filosofia.

Em um moderno Estado-nação, a diversidade étnica tende a desaparecer em consequência da igualdade humana e da prosperidade material. Não é de estranhar, portanto, que mesmo que muitos cristãos vejam os chamados conflitos étnicos como a razão pela qual o milagre econômico da industrialização ainda não aconteceu, e que muitas nações, particularmente na África, continuem mergulhadas na pobreza. Mas a causa do problema pode ser a filosofia política moderna, em vez da identidade étnica. Esta não é uma afirmação do etnocentrismo, mas uma rejeição do mesmo. Etnocentrismo é a raiz do Estado-nação moderno. É por isso que, mesmo em um país como a Uganda, o Estado só pode funcionar através da retenção do inglês como língua oficial porque acha o etnocentrismo residual do opressor colonial mais palatável do que o etnocentrismo de qualquer um dos ethne de Uganda. A possibilidade da construção de um Estado com base no respeito mútuo entre ethne não parece ter sido considerada.

A estratégia das missões evangélicas protestantes da tradução da Bíblia confronta diretamente a visão moderna do Estado-nação. Essa estratégia afirma que a comunicação do Evangelho na própria língua de uma pessoa é vital para o evangelismo eficaz. Mesmo que o pragmatismo seja a força motriz para alguns missionários, a mera aprendizagem da língua de uma pessoa, a fim de ser capaz de comunicar uma mensagem importante, já é o reconhecimento da dignidade e importância de uma característica fundamental da identidade étnica. Comprometer uma língua na escrita e tradução da Bíblia é incrivelmente enobrecedor da identidade étnica. Gramáticas, dicionários e livros têm desempenhado um papel vital na formação e sobrevivência de ethne/nações. Tradutores da Bíblia dão a uma ethne uma possibilidade maior de sobrevivência e crescimento para ser uma nação!

Ethne, a Igreja e Missão – Perguntas Vitais Para Discussão

  • Como pode a igreja demonstrar o modelo de princípio bíblico de unidade na diversidade, no contexto da diversidade étnica?
  • Como nomeações da igreja podem refletir a unidade étnica na diversidade?
  • Qual deve ser a importância da identidade étnica na formação de líderes da igreja?
  • Os cristãos devem insistir na tese de que a formação inicial de todos deve ser em sua língua materna?
  • As igrejas devem pensar mais profundamente sobre a relação entre identidade étnica e da pobreza?
  • Se estabelecer uma igreja em um ethnos ajuda a criar um maior sentimento de nacionalidade, que deveria a) a igreja e b) a agência missionária fazer quando isso leva a um maior desejo de autodeterminação política?
  • Será que um Estado-nação com um modelo econômico de mercado livre pode legalizar a desapropriação de ethne pobres pela ethne rico?
  • Como é que o viés bíblico para a proteção dos menores e menos favorecidos se aplica no contexto da identidade étnica (Deuteronômio 7:07)?
  • Como “amar o seu vizinho [étnico] como a si mesmo” se aplica em um paradigma de reino nas relações interrétnicas?

© The Lausanne Movement 2010

  1. Gen 1:28
  2. Gen 9:7
  3. Gen 10:5 “Daqueles os moradores beira mar espalharam…”
  4. Gen 10:4, cf. 10:20,31,32.
  5. Gordon J. Wenham, Genesis 1-15 Word Biblical Commentary vol. 1, Waco:Word Publishers, 1987, pp.216-7.
  6. Para uma boa análise da passagem em Deuteronômio 2 veja Christopher Wright, New International Biblical Commentary, Deuteronomy, Carlisle: Paternoster, 1996, p. 36. Algumas outras passagens que fazem o mesmo ponto são Dt 26:19; Jó 12:23, Sl 22:27-8; 47:8, 86:9; Dan 12:01 e Atos 17:26-28.
  7. Atos 17:26-27.
  8. op.cit p. 133.
  9. Is. 60:1-11.